Por Rafael Vaz
No Brasil, histórias de músicos, políticos, atletas e influenciadores costumam ocupar o centro das narrativas sociais. Já a trajetória das empresas e dos empresários é frequentemente relegada a um segundo plano, encarada com suspeita ou até mesmo hostilidade. Essa invisibilidade da memória empresarial impacta a percepção social, que raramente reconhece o papel fundamental do setor produtivo na construção do País.
“Até hoje, em quase 300 anos, são poucos os livros que tratam da memória empresarial com base acadêmica ou técnica”, avalia o jornalista Leandro Resende, também formado em Economia e autor do livro “Juceg – 125 anos do Registro Empresarial Goiano”, lançado nesta semana, na cidade de Goiás.
Este fenômeno, segundo ele, contribui para a ausência de museus e espaços culturais dedicados à história das empresas e para a falta de protagonismo empresarial no debate público. “No Brasil, os empresários muitas vezes são vistos como vilões das crises, enquanto em outras culturas, como nos Estados Unidos, são exaltados pelo seu papel na geração de riqueza e inovação,” destaca Resende.
Um livro e um museu para resgatar a história empresarial de Goiás
A data de 29 de julho de 2025 ficará marcada para a Junta Comercial do Estado de Goiás (Juceg) e para o setor produtivo goiano. Na antiga capital, durante as comemorações dos 298 anos da cidade de Goiás e a transferência simbólica dos Três Poderes do Estado para o município, foram inaugurados o Museu Goiano do Registro Empresarial e lançado o livro que conta, de forma detalhada, a trajetória da Juceg e do registro mercantil em Goiás.
O museu, instalado em prédio histórico cedido à Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás (OAB-GO), abriga documentos originais dos primeiros registros empresariais, livros manuscritos, fotografias, atas e uma galeria de ex-presidentes, além de uma linha do tempo que narra os principais eventos do registro mercantil goiano.

Segundo o presidente da Juceg, Euclides Barbo Siqueira, foram reunidos documentos e máquinas que nos remetem ao início dos anos 1900. “A riqueza documental é fruto de muito esforço e pesquisa. O museu é um marco para a preservação da história goiana”, explicou.
O lançamento do livro foi prestigiado pelo governador de Goiás, Ronaldo Caiado, que ressaltou a evolução da Juceg e o apoio do Governo do Estado à autarquia. “Com uma progressão importante na qualificação da estrutura e na eficiência do atendimento ao empresariado goiano, saímos da 27ª posição e hoje somos referência em celeridade, com tecnologia moderna e avançada utilizada para facilitar a vida dos cidadãos”, afirmou.

Entre documentos inéditos e a correção de fatos históricos
O livro escrito por Leandro Resende não é apenas uma compilação cronológica da Juceg. Ele apresenta uma série de descobertas inéditas e correções importantes para a história da autarquia e do registro empresarial em Goiás. Um dado relevante revelado pela pesquisa é que, embora a Juceg tenha sido criada oficialmente em 1900, seu funcionamento efetivo só começou em 1918, após pressão dos empresários e regulamentação pelo Governo Federal. Este hiato de 18 anos até a primeira inscrição empresarial goiana nunca havia sido documentado com precisão antes.



Além disso, o livro organiza em ordem cronológica correta a galeria de presidentes da Juceg, incluindo a revelação de um gestor que esteve à frente da autarquia entre 1939 e 1965 – uma informação inédita que foi descoberta nos arquivos.
“Este trabalho é germinal. Abre um leque para estimular pesquisas futuras sobre a rica história empresarial de Goiás, que até hoje é mal abordada e pouco valorizada”, ressalta Resende.
O livro conta com o apoio das Federações do Comércio (Fecomércio-GO), das Indústrias (Fieg) e da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB-GO), entidades que reconhecem a importância da memória empresarial para a identidade e o desenvolvimento do setor produtivo.
Um olhar sobre o passado para inspirar o futuro
No texto de apresentação do livro, o governador Ronaldo Caiado destaca o papel fundamental da Juceg como instituição que formaliza e impulsiona o empreendedorismo goiano desde os tempos do Império, reforçando a importância histórica e atual da autarquia para o desenvolvimento econômico de Goiás.

Mais que um resgate histórico, a obra representa uma homenagem ao setor produtivo: “um dos principais ativos do nosso desenvolvimento”, nas palavras do governador.
Goiás, hoje, registra mais de 1,2 milhão de CNPJs ativos, empregando cerca de 5 milhões de pessoas. É um dos estados que mais cresce em geração de novas empresas, resultado de uma gestão que alia inovação tecnológica e desburocratização.
Para Caiado, “essa performance revela a confiança dos empreendedores no ambiente de negócios que construímos, com mais transparência e participação democrática. A Juceg, reestruturada e fortalecida, é peça-chave nesta conquista”.
A Juceg como instrumento de desenvolvimento
A importância do registro mercantil e da atuação da Juceg na economia vai além da simples formalização das empresas. É, segundo o presidente Euclides Barbo Siqueira, “um sistema de mira para um bom arqueiro”, que ajuda a economia a mirar seu alvo com precisão. Sem registros adequados e dados confiáveis, a economia torna-se um salto no escuro, uma aventura às cegas.
“A Juceg funciona como um instrumento essencial para garantir segurança jurídica, estimular o empreendedorismo e fomentar o desenvolvimento econômico sustentável no Estado,” complementa Leandro Resende.
Além do livro e do museu, a Juceg prepara um Plano Memorial inédito, que será referência nacional para arquivamento e reconstrução da história empresarial.

A importância da memória empresarial para Goiás
“Em Goiás, sabe-se contar a história de governadores, de músicos e jogadores, mas a história dos empresários, que são protagonistas na formação e desenvolvimento das cidades, acaba perdida”, lamenta o autor.
Muitas empresas importantes para a construção da sociedade já não existem mais, suas histórias esquecidas no tempo. O museu e o livro, com a curadoria de Resende, são passos decisivos para mudar esse quadro e estimular a valorização da memória empresarial goiana. “Não se trata de criar falsos heróis, mas de valorizar histórias fundamentais para a sociedade que vivemos hoje”, enfatiza o autor.
Ele destaca ainda que, como curador, trabalhará para que, na próxima década, Goiás conte com mais espaços públicos, museus e iniciativas que promovam a reconstrução dessa história tão pouco explorada.

Juceg 125 anos: as reflexões do atual presidente
Leitura Estratégica – O livro apresenta uma revisão detalhada dos mandatos e momentos históricos da Juceg. Qual parte da narrativa o senhor considera mais representativa da evolução institucional da Junta?
Euclides Barbo – Minha experiência a partir da leitura de “Juceg 125 Anos” foi muito enriquecedora. Eu, pessoalmente, indicaria a parte inicial do livro, que trata da importância do registro lá no surgimento da atividade comercial no mundo, e as transformações pelas quais a própria Juceg passou, do período colonial até um momento, a meu ver, crucial: o surgimento dos Códigos Civil e Comercial, ainda no século XIX. A profissionalização do registro de empresas já nesse período nos dá uma ideia de como é importante a produção de dados sobre nossa economia, e de como é importante a informação como uma ferramenta de promoção de desenvolvimento e bem-estar.
LE – A obra revela fatos pouco conhecidos, como a atuação da Igreja Católica no registro empresarial no período imperial. Como o senhor enxerga a relevância dessas descobertas para a identidade da Juceg e para o empresariado goiano?
EB – Eu considero fundamental, porque nos faz refletir sobre a magnitude da evolução que experimentamos, além de reverenciar nosso passado, honrando os esforços dos nossos ancestrais. Eu pessoalmente fiquei bastante surpreso a partir da leitura. No Primeiro e Segundo Reinados, a Igreja Católica foi fundamental no esforço de conferir alguma racionalidade à atividade econômica. A atuação de indivíduos como o Cônego Pio Joaquim Marques, que assinou vários registros de empresas em Goiás há mais de 150 anos, deixa clara uma tendência que seria confirmada pouco tempo depois: a melhoria do nosso registro civil, incluído aí o comercial. Se você for observar os documentos da época, fica surpreso com o alto nível de sofisticação, por exemplo, da escrituração que era feita, permitindo já naquele momento histórico, a extração de dados que tornariam possível corrigir rumos, reforçar tendências bem-sucedidas, ou seja: já no Brasil Império havia a preocupação de se usarem os dados como instrumentos de promoção do desenvolvimento. Não há nada mais atual que isso.
LE – Ao solicitar que o foco da pesquisa fosse a história das empresas, o senhor reforça a ideia de que a trajetória da Juceg se confunde com a do setor produtivo. Que mensagem o livro deixa para os atuais e futuros empreendedores?
EB – A mensagem a meu ver é clara. Já no período colonial, o governo português se esforçava para saber o que se passava na economia de Goiás, e a principal forma de se fazer isso era saber que iniciativas surgiam, a que tipo de atividade se dedicavam, e quanto de capital estavam injetando nesses negócios. Desde os primórdios, conduzir a economia tem sido uma questão de um sábio equilíbrio entre a liberdade para empreender e o controle das informações que dizem respeito a como essa liberdade está sendo efetivada, e para onde. Sem um sistema adequado de registros, conduzir uma economia se torna uma aventura às cegas. E, quando esse esforço é realizado, o resultado é aquele que vemos quando lançamos esse olhar em perspectiva histórica: o sentido de projeto, de evolução, de avanço confiante para o futuro. Sem instituições como a Juceg, nossa economia poderia ser metaforicamente comparada ao sábio Diógenes, mas sem a lanterna. Sem dado, a economia, a prosperidade e o desenvolvimento se tornam um perigoso salto no escuro.