George Orwell é, sem dúvida, um dos maiores escritores do século XX. Sua obra permanece viva não apenas por sua qualidade literária, mas por sua impressionante capacidade de antecipar temas que, décadas depois, se tornariam parte do nosso cotidiano. Em especial, “1984” — publicado em 1949 — tornou-se um símbolo do controle absoluto do Estado sobre os indivíduos. Um alerta sombrio sobre o que pode acontecer quando o poder se torna vigilante, centralizador e opressor.
No universo criado por Orwell, os cidadãos são monitorados dia e noite pelo Grande Irmão, um ente invisível, mas onipresente, que tudo vê, tudo sabe, tudo registra. As pessoas perdem o direito à privacidade, à memória e até mesmo à verdade. O Estado reescreve o passado, manipula a realidade e controla até os pensamentos. Um cenário que, embora soasse distópico na época, hoje encontra ecos surpreendentes na vida real.
Vivemos em um tempo em que nunca se teve tão pouca privacidade. Somos filmados constantemente: nas ruas, nos condomínios, nos shoppings, nas empresas. Cada pessoa ao nosso redor carrega uma câmera no bolso. Nossos passos são rastreados, nossos dados, coletados. Em troca de conveniência, entregamos voluntariamente informações sobre onde estamos, o que consumimos, com quem falamos e o que pensamos. E isso sem que, muitas vezes, nos demos conta da dimensão desse monitoramento.
Mas há um tipo de vigilância ainda mais silenciosa e precisa. Uma vigilância legal, institucional, invisível — e profundamente eficaz.
Estamos falando da Receita Federal.
Esse órgão, que deveria ser apenas um instrumento de arrecadação e fiscalização tributária, tornou-se, com o tempo, um verdadeiro Grande Irmão moderno. A Receita sabe quanto ganhamos: salários, pró-labores, rendimentos de aplicações, dividendos, participações nos lucros. Sabe também quanto gastamos: nossas compras com cartão, as escolas dos nossos filhos, os profissionais liberais que contratamos, os planos de saúde, as viagens, os jantares.
Ela conhece o que temos: imóveis, veículos, aplicações financeiras, participações em empresas, até mesmo bens adquiridos no exterior. E mais: a Receita tem acesso a movimentações financeiras que indicam, com bastante precisão, por onde andamos — estabelecimentos frequentados, compras diárias, lazer, férias, deslocamentos entre cidades e países.
Diferente das câmeras de segurança espalhadas por aí, cujos dados são descentralizados e fragmentados, a Receita possui um sistema estruturado, organizado e centralizado. Ela cruza informações automaticamente, em tempo real, e gera alertas sempre que encontra inconsistências. Mais do que uma instituição fiscal, tornou-se uma espécie de supercomputador estatal da vida dos cidadãos.
A pergunta que fica é: estamos mesmo tão distantes de 1984 quanto gostaríamos de acreditar?
Orwell imaginou um Estado opressor que dominaria seus cidadãos pela força, pelo medo e pela vigilância direta. O que talvez ele não tenha previsto — ou tenha previsto nas entrelinhas — é que essa vigilância poderia vir de forma legal, silenciosa e até bem aceita. E, pior, que nós mesmos, pouco a pouco, entregaríamos nossas informações em troca de conforto, segurança e praticidade.
Talvez o controle absoluto não precise mais ser imposto. Basta que seja permitido.

Dênerson Rosa
Advogado, fundador da Sociedade de Advogados Dênerson Rosa, mais de 20 anos de atuação em Direito Tributário e Empresarial.