Caso Lojas Americanas e a credibilidade das auditorias Big Four

Por Cássius Rodrigues

Cássius Rodrigues é  auditor e sócio-fundador da Marol Auditores Independentes. Especialista em auditoria e tributos. Possui MBA em Gestão Financeira e Controladoria pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e Especialização em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília, além de Pós-MBA em Gestão Baseada em Valores e Avaliação de Ativos: VBM & Valuation pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Mestrando em Ciências Contábeis pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), é Subcoordenador da Comissão de Auditores Independentes do CRC Goiás.

Frequentemente utilizado no ambiente de negócios, o termo big four representa as quatro maiores empresas de auditoria independente do mundo. A expressão se tornou sinônimo de qualidade entre investidores, que, por vezes, exigem que as companhias investidas sejam por elas auditadas, para que então aportem os seus investimentos.

É inegável que empresas com grandes estruturas operacionais desenvolvem processos que fortalecem a qualidade de seus produtos ou serviços. Mas, certamente este não é o caso das firmas de auditoria, nas quais a qualidade não está atrelada ao seu tamanho, mas ao conhecimento técnico e experiência da equipe envolvida na execução das atividades.
Isto é claramente observado pelas próprias empresas auditadas, que em alguns casos se veem cercadas por profissionais novos – em idade, conhecimento e experiência –, revisando operações contábeis complexas. Isso não é novidade para quem é do meio. Sequer para os investidores.

Este fato, e é um fato, traz com frequência à tona escândalos envolvendo erros, inconsistências, fraudes ou manipulação de resultados contábeis. No Brasil, já acompanhamos várias notícias publicadas nos meios de comunicação: CVC Brasil, Banco Panamericano, Petrobrás, Magazine Luiza e, mais recentemente, as Lojas Americanas. Esses são apenas alguns (poucos) exemplos. E, diga-se, os noticiados.

O mais recente caso das Lojas Americanas é estrondoso. No dia 14 de agosto, a companhia publicou os números de 2023 e revisou os anteriores, apontando no último exercício um prejuízo de R$ 2,272 bilhões e uma perda, no 1º trimestre de 2024, de R$ 1,412 bilhão. Todos resultados sequentes à 2022, cujo amargo prejuízo dos investidores foi atualizado para R$ 13,2 bilhões.

O estrondo surge por serem resultados que há décadas estavam em suas demonstrações contábeis, mas não eram evidenciados. Uma engenhosa estrutura, criada com o propósito de camuflar, ano após ano, a realidade. 

Em termos mundiais, já vimos também outros casos, como o da companhia aérea Gol e da fintech alemã Wirecard, além de vários outros. Situações inclusive com forte sanção dos órgãos reguladores sobre as empresas de auditoria, em algumas até mesmo com a suspensão temporária da permissão de prestação de serviços localmente, como é o caso da Wirecard.

Algo precisa urgentemente ser revisto, e não falamos de regulamentação do setor, que já é fortemente controlado pelo Conselho Federal de Contabilidade (CFC), pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), pelo Comite de Pronunciamentos Contábeis (CPC), além de várias instituições sérias. Estamos falando em mudar a percepção do mercado, que deve exigir das empresas que auditam os seus investimentos um rigor técnico, e não tamanho.

Problemas ocorrem, o que assusta é a frequência

Como em qualquer área de atuação profissional, problemas ocorrem, mas o maior problema é quando se tornam frequentes. Ano passado, o Public Company Accounting Oversight Board (PCAOB), entidade americana fiscalizadora do trabalho das firmas de auditoria independente, observou deficiências em 30% das auditorias realizadas pelas Big Four. Considerando que dados (1) da CVM de 2021 mostram que mais de 63% das empresas listadas na bolsa de valores são auditadas por uma das Big Four, número que ultrapassa os 95% quando falamos de auditoria em fundos de investimento, se o percentual de deficiências apontado pelo PCAOB se replicar por aqui, a situação se torna muito preocupante.

Estas deficiências não indicam que os números das companhias por eles auditadas estejam incorretos, mas que em alguma parte do processo de auditoria há falha, seja de aplicação dos testes, de revisão dos controles internos e até mesmo da supervisão dos trabalhos. Tudo isto têm força para culminar no cenário que hoje vivemos. 
Não é uma questão de julgamento destas empresas ou até mesmo sobre os auditores independentes. Sabemos o cuidado que todos têm na execução de suas atividades, mas é certo que a reflexão precisa existir, e algo precisa ser feito.

Erro ou fraude

É sabido que as demonstrações contábeis podem apresentar distorções geradas por fraude ou erro. Compreender a distinção dos termos é fundamental para delimitar responsabilidades. Enquanto a fraude refere-se ao ato intencional de omissão, manipulação de transações, adulteração de documentos, registros e demonstrações contábeis, o erro refere-se ao ato não-intencional na elaboração de registros destas demonstrações.

Ou seja, enquanto o erro é um ato não intencional, a fraude é o ato de obter benefício próprio em determinada situação, intencionalmente (2).

Se é certo que as fraudes corporativas podem ir de corrupção, gerenciamento e falsificação de demonstrações contábeis e até mesmo a apropriação indevida de ativos das Companhias (3), certo é também que não é papel do auditor detectar fraudes, e este sequer consegue fazê-lo, ainda mais quando há uma equipe da companhia fortemente capacitada e disposta a usar o conhecimento para o engano. Torna-se praticamente impossível a detecção, mas talvez não impossível os indícios de sua existência, havendo inclusive orientação do CFC na condução de atividades que as detectem (4). Reprisando, sem julgamentos, mas essa reflexão é necessária.

Como auditores independentes, é fundamental relembrarmos diariamente à sociedade que nossa atividade vai além de validar números: temos o compromisso com as famílias que investem em companhias o patrimônio que adquiriram durante anos de trabalho, assegurando à estas mesmas famílias que as suas decisões de investimento se pautaram em números que, auditados por nós, representam a realidade.


Referências

1. Comissão de Valores Mobiliários, CVM. Auditores Independentes - Uma análise do mercado de auditoria e dos programas de Revisão pelos Pares e Educação Continuada no âmbito do mercado de valores mobiliários brasileiro - Assessoria de Análise Econômica e Gestão de Riscos da CVM (abril de 2021). 2021. Disponível em: <httpss://www.gov.br/cvm/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos/estudo-asacvm-auditoresindependentes-31-5-2021.pdf/@@download/file>. Acesso em: 16 ago. 2024.
2. Murcia, F. D., & Borba, J. A. (2007). Estrutura para Detecção do Risco de Fraude nas Demonstrações Contábeis: Mapeando o Ambiente Fraudulento. Brazilian Business Review, 4(3), 171–190.
3. Perera, L. C. J., Freitas, E. C. de, & Imoniana, J. O. (2014). Avaliação do sistema de combate às fraudes corporativas no Brasil. Revista Contemporânea de Contabilidade, 11(23), 3–30.
4. NBC TA 240 (R1) – Responsabilidade do auditor em relação a fraude, no contexto da auditoria das demonstrações contábeis.