Rafael Mesquita
Legalizar ocupações clandestinas, seja em áreas urbanas ou rurais, oferecendo a seus ocupantes a condição de proprietário, vai muito além da simples formalização da posse. A regularização fundiária transforma vidas, reduz desigualdades e impulsiona o desenvolvimento com inclusão social, sendo uma política pública essencial para o direito à cidadania, à terra e à dignidade.
Mas, segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, mais de 30 milhões de domicílios urbanos no País precisam de regularização fundiária, o que representa 50% das moradias nacionais. Somente em Goiânia, estima-se que, todos os anos, são identificados mais de 30 loteamentos clandestinos, e que a irregularidade está distribuída em mais de 300 bairros, dos mais nobres aos mais carentes.
A especialista em Direito Público e gestora de regularização fundiária da Expert Brasil, Ana Cristina Sá, avalia que essa situação impacta diretamente na ordenação territorial, na eficiência da ocupação do solo, no bem-estar social e afronta a função social da propriedade e o direito à moradia, resguardados na Constituição. “A falta de formalização ainda contribui para o crescimento desordenado da cidade, podendo dificultar o recebimento de serviços básicos, como água, luz, esgoto e recolhimento de lixo”, afirma. Já na zona rural, ela explica que o problema impede o acesso do pequeno agricultor ao crédito, a políticas agrárias, à assistência técnica, além de causar o desordenamento territorial e atingir, até mesmo, a questão da preservação ambiental.

A insegurança jurídica ainda expõe os moradores ao risco de situações de conflitos de propriedade e disputas judiciais que podem se arrastar por anos. “O imóvel que não tem registro está fora do aparato formal e, portanto, seu ocupante não conta com as garantias e seguranças fornecidas pelo sistema jurídico”, destaca o diretor institucional da Associação Desenvolvimento Urbano de Goiás (Adugo), Francisco Lopes.
Ele também ressalta que a irregularidade atinge significativamente o crescimento econômico dos municípios. “O imóvel irregular é comercializado de forma precária, sem qualquer segurança jurídica, recolhimento de tributos, afasta investidores e não pode ser objeto de financiamento”, pontua.
As razões da informalidade
De um lado, a cidade legal, formada por parcelamentos aprovados, geralmente em áreas centrais ou valorizadas, destinada às classes médias e altas, com acesso à infraestrutura urbana e segurança jurídica. De outro, a cidade informal, ocupada pelas camadas populares, marcada por loteamentos irregulares nas periferias e por favelas em áreas centrais.
Esse cenário remonta ao histórico da legislação fundiária no Brasil. A Lei de Terras de 1850, por exemplo, transformou a terra em mercadoria ao permitir sua aquisição apenas por compra. A medida visava impedir que ex-escravizados e imigrantes pobres tivessem acesso à terra, forçando-os a se tornarem mão de obra assalariada para os latifúndios. Pequenos posseiros, incapazes de pagar as taxas previstas, também foram excluídos da regularização, agravando a concentração fundiária.
Depois, a Lei nº 6.766/1979 passou a regulamentar o parcelamento do solo urbano, tratando de ocupação, posse, desapropriação, escrituração e constituição de direitos reais. “Embora importante, essa legislação não respondeu adequadamente à realidade das ocupações informais crescentes nas cidades”, acredita a gestora de regularização fundiária da Expert Brasil, empresa de consultoria especializada.
Ana Cristina Sá ainda enumera as principais causas da realidade brasileira: “Alta densidade demográfica, êxodo da população menos favorecida para os grandes centros, crescimento desordenado das cidades, o interesse de grupos econômicos e políticos, o descaso e a falta de capacitação da administração pública são fatores determinantes”, analisa.
Para o diretor institucional da Adugo, a irregularidade fundiária é oriunda especialmente da inoperância estatal, especialmente das prefeituras. “Os municípios muitas vezes não possuem estrutura mínima técnica para a realização de fiscalização com o objetivo de evitar o surgimento dos loteamentos clandestinos e regularizar os já existentes”, afirma Francisco Lopes.
De acordo com ele, são inúmeras as prefeituras que sequer apresentam projeto para obtenção de recurso do governo federal, em linha específica do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para a promoção de projetos de regularização de baixa renda. Com isso, muitos dos que foram contemplados não conseguem dar prosseguimento à contratação.

Legislação vigente
Somente em 2017 surgiu a Lei nº 13.465, legislação atual que trata da regularização fundiária urbana e rural no País. A norma instituiu medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais para integrar assentamentos irregulares ao ordenamento legal.
A nova legislação criou a Reurb (Regularização Fundiária Urbana) e foi dividida em: Reurb-S (de interesse social, voltada à população de baixa renda) e Reurb-E (que não se enquadra diretamente nos critérios de interesse social, mas também necessita de regularização para ocupações de interesse específico). “A nova lei representou um avanço na garantia do direito à moradia, à segurança da posse e à cidadania. Com ela, o País ganhou um marco legal mais abrangente e eficaz”, avalia a gestora de regularização fundiária da Expert Brasil.
De acordo com ela, apesar dos avanços, o processo enfrenta desafios como a sobreposição de áreas, a falta de infraestrutura e as disputas fundiárias. “A superação dessas barreiras exige articulação entre os entes federativos e apoio técnico especializado”, conclui.