Nas últimas duas décadas, o Brasil se acostumou a conviver com uma contradição perturbadora: enquanto o poder público tropeça em suas funções mais básicas, o crime organizado se profissionaliza, amplia suas redes e exporta sua influência para além das fronteiras nacionais.
Desde a crise norte-americana no fim dos anos 2000, que se tornou mundial, as contas públicas colapsaram. Nunca mais se ajustaram. Aliás, só pioraram. A metástase do mau gasto público se espalhou do Executivo para outros órgãos, principalmente para o Poder Legislativo, que, em todas as esferas, se tornou um tumor do tamanho de uma melancia.
O Legislativo agora executa super-orçamentos e comanda emendas que fazem um deputado federal, só para citar um exemplo, “valer” (ter poder) de um ministério. No último dia do ano, na última linha do balanço, o mais parvo dos deputados federais tem mais capital que líder de bancada de uma década atrás.
SSe a dificuldade de governar tornou-se um traço crônico das sucessivas administrações, em todos os níveis de poder, nas organizações criminosas, o projeto segue sem dor, com agilidade estratégica, capacidade de articulação internacional e, o mais preocupante, controle territorial crescente.
O Executivo vive atrapalhado em déficits eternos e privilégios incontáveis para servidores do alto escalão, ignora qualquer intenção de fazer uma reforma administrativa e mantém uma guerra diária contra o Legislativo empoderado, encorajado e desafiador. Nesse cenário de confusão do poder público, o crime faz a festa e comemora tanta incompetência.
É exatamente nesse vácuo que o crime organizado floresce. Em comunidades onde o Estado não chega, as facções atuam. A ausência de serviços é preenchida por uma presença paralela que impõe regras, oferece proteção e até presta assistência – uma simulação perversa de governança, baseada no medo e no controle social. O tráfico de drogas, antes concentrado nas periferias urbanas, hoje se alia a esquemas sofisticados de lavagem de dinheiro, tráfico de armas, milícias e corrupção institucional.
A crise de governabilidade no Brasil tem múltiplas raízes. Há uma máquina pública pesada e fragmentada, marcada por disputas corporativas, clientelismo e burocracia ineficiente. Soma-se a isso um sistema político polarizado, frequentemente paralisado por embates ideológicos e negociações infrutíferas. Nesse cenário, a implementação de políticas públicas estruturantes se torna tarefa hercúlea. Saúde, educação, segurança e infraestrutura seguem marcadas por promessas não cumpridas, enquanto a população se vê desassistida e descrente.
O que antes era uma atuação regional, hoje é uma rede global. Facções brasileiras têm atuado diretamente em portos estratégicos, mantêm interlocução com cartéis internacionais e comandam rotas de exportação de cocaína para a Europa, África e Ásia. A prisão de líderes de facções em países como Paraguai, Bolívia, Suriname e até Espanha e Emirados Árabes evidencia a transnacionalização desse fenômeno. O Brasil não exporta apenas commodities agrícolas: exporta também um modelo de crime organizado altamente adaptável, com raízes locais e ambições globais.
A luta pela governabilidade não pode mais ser travada apenas nos gabinetes. Ela precisa acontecer onde o Estado deixou de existir – e onde o crime já governa.
Leandro Resende – editor-chefe da Revista Leitura Estratégica
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