Por Rafael Mesquita
Haikal Helou, 57 anos, tinha um trato com o pai: se o patriarca da família falecesse, ele, como filho homem mais velho, voltaria a Goiânia para cuidar da mãe, das duas irmãs e das finanças da família. É assim na cultura árabe, que era seguida à risca pelo senhor Samyr Helou, fundador do Hospital Santa Mônica e descendente de sírios.
Em 1999, Haikal estava bem estabelecido no Rio de Janeiro, já graduado em Medicina, casado com a carioca Cláudia Villalon Helou e fazendo residência em cirurgia geral e trauma no conceituado Hospital Miguel Couto. Ele não imaginava que aquilo poderia acontecer, já que o pai estava em remissão de um câncer. Mas foi o que ocorreu: a doença voltou ainda mais forte, Samyr piorou e morreu aos 67 anos. Haikal ainda passou um ano na ponte aérea Rio-Goiânia, concluiu o curso de residência e retornou de vez para a capital de Goiás.
Momento de encarar uma outra realidade, nem um pouco sonhada por Haikal, que nem pensava em voltar a morar em Goiânia. “A minha residência no Miguel Couto era uma paixão, um sonho. Em pouco tempo, tive que assumir sozinho a administração do hospital (Santa Mônica), atuando também como cirurgião geral e cuidando da minha família. Passei a ter muitas obrigações que outros amigos da minha época não precisaram ter”, recorda.
Fundado em 1967 pelo médico psiquiatra Samyr Helou, o Hospital Santa Mônica começou apenas como clínica psiquiátrica, no Setor Sul, em Goiânia. A mudança para a sede atual, localizada na Chácara Aurora, em Aparecida de Goiânia, ocorreu nos anos 1970, quando a unidade de saúde expandiu sua atuação para as áreas de neurologia, neurocirurgia e neurodiagnóstico. “Meu pai não tinha sócios; até falecer, administrava sozinho. Nessa época, um hospital era formado basicamente por médicos e menos profissionais de saúde de outras áreas, diferente de hoje, em que eles são apenas uma das engrenagens da máquina”, explica.
Se as dificuldades seriam grandes para substituir o pai na gestão do negócio da família, Haikal teve nas duas irmãs, graduadas em Psicologia (Jordana e Iardena), um grande suporte para auxiliá-lo. “Atuam profissionalmente no nosso hospital e me ajudam muito na gestão. Sempre quiseram participar e se envolver”, afirma. O médico explica que a família nunca teve outros investimentos tão comuns em Goiás, como o agronegócio. “Não temos boi, fazenda, plantação de soja. O hospital é o nosso único negócio”, conta.
Mas o conjunto da obra quase o fez desistir. Quando passou a administrar o hospital, tinha a sensação de que, mesmo tendo aprendido tantas coisas fora de Goiás, não sabia de nada. “A ideia que eu tinha é que em Goiânia havia uma realidade própria, diferente daquela que eu aprendi”, acredita. Foi abandonando aos poucos as coisas que tanto gostava de fazer, entre elas, o tênis, que praticava frequentemente. “O dia a dia foi me moendo. Não queria ser dono de hospital, morar em Goiânia, tinha taquicardia, sair de casa era difícil, gerir o hospital ficava cada dia mais complicado. Fui desistindo aos poucos e nem percebia. Era uma forte depressão que me atingia naquele momento”, relembra.
O ano era 2011. Haikal vivia o auge da depressão quando uma grave crise atingiu os prestadores de serviço da área de saúde em Goiás. “Fui conversar com o diretor financeiro do Ipasgo, que havia bloqueado o nosso pagamento. Ele se recusou a realizar os repasses, alegando questões jurídicas. Me juntei à Associação dos Hospitais de Alta Complexidade, que ajudei a fundar, e começamos uma greve”, destaca. Foi uma virada de chave na vida do médico. “Isso mudou a minha vida. Depressão é uma doença, mas a necessidade de cuidar da minha família e de mais quatrocentos funcionários me deu o impulso que eu precisava”, afirma.
A partir dali, ele teve a percepção de que sozinho não iria alcançar os objetivos e que o associativismo era algo importante. A ideia central seria uma relação recíproca de proteção ao grupo. Tornou-se presidente da Associação dos Hospitais Privados de Alta Complexidade do Estado de Goiás (Ahpaceg). “Era o capitão do navio que estava afundando e, se aquilo afundasse, seria minha culpa”, acredita. Haikal ficou à frente da entidade de 2011 até maio deste ano. “Passei a trabalhar sábado, domingo e feriado para mudar aquela realidade. Não tinha férias, carro novo, viagem. Todas as minhas atividades eram voltadas ao hospital e à entidade”, explica.
A realidade do Hospital Santa Mônica mudou muito desde a morte do pai, em 1999. Se antes 92% da receita da unidade de saúde era obtida através do SUS, atualmente o recurso representa apenas 0,3%. Se no passado o doutor Samyr geria sozinho o negócio da família, hoje, a administração é profissional, formada por uma equipe de médicos gestores. Haikal ocupa o cargo de presidente do conselho.
Medicina em Goiânia
A comparação entre Goiânia e São Paulo em relação à qualidade e à oferta de serviços de saúde, como muitos gostam de fazer, é totalmente descabida para Haikal. “Não é só na área de saúde. Não podemos fazer essa comparação em restaurantes, hotelaria etc. São duas realidades muito diferentes”, avalia. Ele explica que Goiânia tem apenas 20% dos usuários com planos de saúde, enquanto na capital paulista esse número chega a 50%.
O médico entende que o serviço de saúde na capital de Goiás pode ser comparado a outras cidades como Curitiba, Belo Horizonte e Juiz de Fora. “Nesse tipo de atividade, Goiânia se parece muito com o Rio de Janeiro da década de 1990 para 2000, formado basicamente por hospitais familiares”, analisa. Haikal explica que, quase 30 anos depois, o Rio domina o setor empresarial de saúde no País, sobretudo devido à visão do médico Jorge Moll, fundador da gigante brasileira do setor de saúde Rede D’Or – a maior rede de hospitais privados do Brasil. “Ele compreendeu que o serviço tinha que ter qualidade, com uma gestão empresarial. Eu vi acontecer lá e pensava que isso iria chegar aqui também, com grandes redes mais estruturadas vindo para Goiás”, explica.

Aos poucos, essa realidade tem chegado ao Estado. Diante do risco de perder espaço e competitividade, Haikal e outros empresários do setor criaram o G500. O grupo é formado por cinco tradicionais hospitais privados de Goiânia: Hospital da Criança, Hospital do Coração, Hospital de Acidentados, Hospital Santa Mônica e Ela Maternidade. A intenção é consolidar a unificação das gestões. A integração criou um negócio avaliado em mais de R$ 1,2 bilhão.
Conselheiro do G500, Haikal explica que a ideia é criar um centro de serviços compartilhados. Ele exemplifica citando o que aconteceu no segmento de supermercados em Goiânia anos atrás. “Somos aquele Passe Bem, reconhecido regionalmente, mas aí surge um Pão de Açúcar, um Extra na cidade para concorrer. O que fazemos? Fusão, vendemos, quebramos ou diminuímos nossa operação e focamos em um nicho de mercado? O objetivo é nos prepararmos para a presença das grandes redes na capital”, afirma.
Recentemente, o Bradesco Saúde fechou uma parceria com o G500 para oferecer planos de saúde voltados a empresas em Goiás de todos os tamanhos e perfis. “Essa fase vai abrir uma nova etapa de relacionamento e de produtos para os integrantes do grupo. Vencemos a desconfiança e apostamos em algo novo que está dando certo, com ótimas vendas”, disse.
Diante desse cenário, os tradicionais hospitais da cidade necessitam compreender as atuais demandas do mercado. “Goiânia se concentrava em duas ou três fontes de pagamento; atualmente, há uma diversificação maior”, explica. Há ainda a mudança de perfil dos pacientes, sobretudo no pós-pandemia. “Eles exigem mais, passaram a escolher o hospital em que querem ser atendidos”, avalia.
Neste ano, já foram sete unidades de saúde fechadas na cidade. O sucesso será justamente daqueles que conseguirem sobreviver a essa transformação. “Temos mais hospitais fechando do que abrindo em Goiânia. Quem vai sobreviver? Não sei. Mas penso que, os que fizeram o dever de casa nos últimos anos, têm mais lastro para chegar a 2026. Aqueles que conseguirem se manter até lá terão um mercado melhor nas próximas duas décadas”, acredita.
Pai
O pai, doutor Samyr Helou, era um médico psiquiatra muito conhecido em Goiânia. Foi professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG) e um dos fundadores do curso de Filosofia da instituição. Ainda contribuiu para a criação da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) Goiânia, foi diretor dos hospitais Geral de Goiânia (HGG) e Adauto Botelho, além de vice-presidente do Conselho Regional de Medicina.
Filho caçula de uma família de sírios, lutou muito para conquistar todo esse currículo e batalhava para que o filho primogênito também chegasse longe na vida. “A linha de raciocínio dele era assim: se eu vim do nada e consegui alcançar tudo isso, por que você, que tem tudo, não vai conseguir?”, lembra Haikal. “Eu ainda não tinha maturidade suficiente para argumentar que a minha história de vida era diferente da dele”, afirma.



O doutor Samyr queria que o filho fosse o melhor em tudo que fizesse, seja no esporte, na escola ou na faculdade. Mas não celebrava as conquistas de Haikal, apenas dizia que ele deveria batalhar para alcançar mais. “A nossa relação era boa até a hora que não era mais”, reflete. Por esse motivo e pelas constantes brigas em que se envolvia na adolescência, Haikal desejava muito se mudar de Goiânia, o que aconteceu quando tinha 16 anos e foi morar primeiramente com um irmão adotivo e depois, sozinho, em Copacabana, no Rio de Janeiro. Lá, fez o segundo grau e, posteriormente, a faculdade.
O fundador do Hospital Santa Mônica nunca impôs claramente ao filho que fizesse o curso de Medicina. “Eu queria ser piloto de caça, advogado, mas meu pai deixava mensagens subliminares para que eu seguisse a profissão de médico. Além disso, a sombra dele era muito grande. As pessoas diziam que eu tinha que ser igual a ele, e isso me incomodava”, recorda.
Havia uma clara dificuldade de comunicação entre os dois, o que refletia diretamente na relação. “Essa situação durou até a morte dele. Nunca conseguimos nos reconciliar. Sempre achei que haveria tempo suficiente para transformar isso, mas não deu”, emociona-se.
Mais de 20 anos após a morte do pai, Haikal pensa nele todos os dias e gostaria de ter a oportunidade de conversar sobre tudo o que se passou entre os dois. “Se meu pai voltasse, eu diria: você tinha razão, se eu tivesse seguido o que havia me dito, a minha vida seria muito mais fácil”, afirma. O médico soube anos depois que o doutor Samyr, que não o elogiava pessoalmente, fazia isso para outras pessoas. Uma conquista na conturbada relação.
Goiânia e aposentadoria
Um dos símbolos que representa grande parte dos goianienses é o orgulho da capital em que nasceram. Dizer isso em qualquer lugar do mundo faz parte da tradição local. Mas não é o caso de Haikal. “Quando estou fora, não sinto saudades de Goiânia. Tenho um ciclo de amizades que, mesmo sendo da cidade, se afasta do padrão goianiense”, explica.
Haikal critica o que acredita ser uma cultura de ostentação entre os moradores da cidade. “Quando se tem uma cidade do porte de Goiânia (15º PIB do País), tornando-se uma das principais do mercado de luxo do Brasil, há algo de errado. O problema é que aqui as pessoas gostam de esbanjar”, avalia. E completa: “Querem ter o carro alemão branco, morar no condomínio horizontal e dizer entre amigos que vão duas vezes por ano ao exterior. É uma visão muito superficial, que também se vê em outras cidades, mas em Goiânia isso é cultural”, acredita.
A aposentadoria já está próxima. A ideia é vivê-la longe do cerrado brasileiro. O litoral da Galícia, na Espanha, é o local escolhido pela família. A esposa, Cláudia, tem parentes que vivem lá. “Penso em me mudar no ano que vem para ficar de três a cinco meses e nos adaptarmos. Depois, dentro de três a quatro anos, me transfiro em definitivo com a minha esposa e nossos dois filhos”, acredita.
Ele afirma ter encontrado na cidade de Vigo tudo o que não encontrou no Brasil para viver até os seus últimos dias. “É o conforto e, principalmente, a questão da segurança”, relata. Além disso, Haikal destaca o prazer de poder morar no Velho Continente. “Antes, eu achava que seria Nova Iorque, mas percebi que o lugar certo é a Espanha. Lá, em duas horas de viagem, estou em outro país. Na Europa, também há o fato de a riqueza cultural ser fascinante”, avalia.