Por Rafael Mesquita
O metanol, substância tóxica e de baixo custo, tornou-se o novo atalho para o crime organizado no mercado de bebidas falsificadas. Sua presença em destilados ilegais não é apenas resultado da ganância de quadrilhas, mas também consequência direta de um sistema tributário que transforma a formalidade em desvantagem competitiva. “Quando o Estado tributa demais, ele inadvertidamente abre espaço para que o crime ofereça o mesmo produto, ou uma perigosa imitação, a um preço muito menor”, acredita o advogado tributarista Denerson Rosa.
O etanol e o metanol partilham uma origem química semelhante, mas seguem caminhos opostos na economia. O primeiro é símbolo de energia limpa e orgulho nacional; o segundo, um veneno que se infiltra nas garrafas de botecos clandestinos. “A alta tributação não é apenas um peso fiscal. É um fator de distorção. Quando o Estado eleva demasiadamente a carga tributária sobre determinado setor, cria uma diferença estrutural de custos entre quem cumpre a lei e quem a ignora”, avalia Rosa.
Ainda segundo ele, essa diferença se converte em vantagem competitiva para o sonegador, que consegue oferecer o mesmo produto por um preço menor e ainda assim preservar margens de lucro mais elevadas. O resultado é perverso: o empresário que permanece dentro da legalidade passa a competir em condições artificiais, pressionado a reduzir margens ao limite ou até vender com prejuízo para não perder mercado. Alguns, diante da inviabilidade, acabam cedendo à tentação da sonegação parcial, não por vocação ilícita, mas por sobrevivência econômica.
O advogado tributarista Alexandre Limiro entende que a taxação excessiva dificulta o acesso do consumidor ao produto. “É um convite à criação de um mercado paralelo, em que o crime organizado aproveita a oportunidade. Isso é um problema real e recorrente”, afirma. De acordo com ele, o caso da adulteração de bebidas destiladas com metanol é resultado dessa realidade. “O mercado de falsificação não se preocupa com a saúde dos consumidores e, ao buscar reduzir custos, acaba adulterando os produtos com substâncias nocivas. Isso traz riscos graves e é um reflexo de como a alta carga tributária incentiva essas práticas”, avalia.

Para os destilados, a tributação brasileira é extremamente elevada, em média 65%, chegando a mais de 80% para alguns produtos. Eduardo Cidade, presidente da Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD), faz uma análise da difícil relação das empresas com os consumidores nesse segmento: “Nesse mercado, o brasileiro consome por preço. Se você colocar na prateleira um produto de valor agregado maior por R$ 1 mil, mas na lojinha da esquina vender um produto similar por R$ 700, o consumidor precisa começar a entender que existe o risco desse produto bem mais barato ser falsificado.”
Denerson Rosa explica que o crime percebe a oportunidade dentro desse cenário, organiza-se, compra químicos, falsifica rótulos e distribui. Segundo ele, o resultado é mortal, tanto para a saúde pública quanto para a economia. “Cada dose adulterada é um retrato da ineficiência estatal, que prefere punir o consumo em vez de repensar o modelo de tributação”, afirma.
A ideia é que um sistema tributário inteligente não deve ser instrumento de punição, e sim de equilíbrio. Além disso, o combate à criminalidade não deve ser feito apenas com ação policial, mas com coerência econômica. “A repressão é necessária, mas insuficiente. Quando o crime nasce de incentivos econômicos distorcidos, o uso exclusivo da força policial combate apenas o sintoma, não a causa. Sem corrigir um sistema tributário desproporcional, o Estado brasileiro trava uma guerra infinita e cara contra um inimigo que ele mesmo criou”, afirma. Rosa completa defendendo que reduzir tributos em setores vulneráveis não significa diminuir o Estado, mas sim enfraquecer o crime, retirando-lhe a margem que o sustenta.
De acordo com Alexandre Limiro, a lógica do Governo Federal tem sido seguir a tendência de usar tributos seletivos para desestimular certos consumos considerados prejudiciais. Já para itens essenciais, como energia e combustível, o advogado acredita que o ideal seria a desoneração de tributos, pois impactam diretamente no desenvolvimento do País.
Na visão do presidente da ABBD, Eduardo Cidade, o mais importante para a categoria seria a manutenção de uma isonomia entre os tipos de bebida alcoólica. Para isso, ele defende uma alíquota híbrida, que leve em conta tanto o volume de álcool no produto (chamado imposto específico ou ad rem) como o preço de venda do item (imposto ad valorem). “A soma das duas alíquotas resultaria no imposto seletivo”, diz.
Pesquisa do Euromonitor Internacional, encomendada pela Associação Brasileira de Bebidas Destiladas, revela que a penetração do álcool ilícito no mercado legalizado representou, no ano passado, uma perda fiscal de R$ 28 bilhões ao Governo brasileiro. Em 2023, a perda havia sido ligeiramente maior: R$ 28,2 bilhões.

Efeitos do metanol
Os casos recentes de intoxicação grave por metanol – um composto químico de uso industrial, presente em solventes, combustíveis e outros produtos, mas impróprio para consumo humano devido à sua elevada toxicidade – têm provocado preocupação e amplo debate no Brasil.
O cenário levanta uma questão central: por que o metanol é tão mais perigoso que o etanol, o álcool presente nas bebidas comuns?
Ambos são classificados quimicamente como álcoois e, do ponto de vista visual, são muito semelhantes: são transparentes, têm a mesma viscosidade e inclusive o mesmo odor, não sendo possível distingui-los por percepção. No fígado, os dois são metabolizados pela mesma enzima, mas os resultados são distintos: o etanol gera substâncias menos nocivas, enquanto o metanol é transformado em formaldeído (o formol usado para embalsamar cadáveres) e em ácido fórmico, extremamente tóxico.
O metanol é rapidamente absorvido. Os primeiros sintomas podem ser sentidos em duas até 48 horas — a depender do quanto da substância foi ingerido. Uma vez absorvido pelo trato digestivo, ele passa pelo fígado e se transforma em dois metabólitos tóxicos, que entram na circulação. Eles chegam rapidamente ao sistema nervoso, e as células mais vulneráveis são os neurônios. Por isso, os primeiros sintomas são dor de cabeça intensa, alterações no nervo óptico, visão turva ou borrada, podendo evoluir para redução da acuidade visual e, nos casos mais graves, cegueira.
O corpo também passa a produzir substâncias muito ácidas durante a digestão desse produto. Isso faz com que o sangue fique mais ácido do que deveria, uma condição chamada acidose metabólica. Para tentar compensar, a pessoa começa a respirar de forma rápida e curta, numa tentativa de eliminar esse excesso de acidez pelo ar. Esse desequilíbrio afeta todas as células do corpo, mas o coração é um dos primeiros a sofrer, porque precisa de um funcionamento muito estável para manter os batimentos.
O sistema respiratório também é prejudicado, já que precisa trabalhar além do normal para tentar equilibrar o organismo. Os rins, por sua vez, têm papel central nesse processo: eles tentam segurar bicarbonato (que é uma substância alcalina) para neutralizar a acidez. Mas esse esforço cobra um preço — a função de filtração fica comprometida, e o paciente pode evoluir para uma insuficiência renal.
Essa combinação de efeitos – toxinas circulando no sangue, acidose metabólica, sobrecarga do coração, dos pulmões e dos rins – pode levar à falência de múltiplos órgãos, porque cada sistema vital passa a funcionar de forma inadequada, sobrecarregando os demais e comprometendo a capacidade do corpo de manter funções essenciais.
Segundo os médicos, não há dose de metanol que possa ser considerada segura e, quanto mais cedo o atendimento após a suspeita de intoxicação, maior a chance de impedir complicações. O tratamento envolve oferecer o antídoto (etanol endovenoso, para competir com o metanol no fígado) e medidas de suporte.
De acordo com o Ministério da Saúde, as notificações de intoxicação por metanol após consumo de bebida alcoólica no Brasil chegam a 148 registradas, sendo 41 casos confirmados e 107 em investigação. Em relação aos óbitos, seis foram confirmados no Estado de São Paulo e dois em Pernambuco. Outros dez seguem em investigação nos estados de São Paulo, Pernambuco, Mato Grosso do Sul, Paraíba e Paraná.

Outros setores
O mesmo fenômeno das bebidas destiladas ocorre com o cigarro. No Brasil, mais da metade do tabaco vendido vem do contrabando, abastecido por fábricas no Paraguai que prosperam à sombra de um imposto menor. “O consumidor, pressionado pelo bolso, ignora o risco e alimenta um circuito que financia armas, corrupção e tráfico”, afirma Denerson Rosa. Nesse segmento, cerca de 70% do valor do produto é composto de tributos.

Há ainda casos como o mercado de combustíveis, em que cerca de 38% do valor do produto é composto por tributos. Estima-se que cerca de 14 bilhões de litros sejam provenientes de adulteração ou falsificação (o que representa cerca de 11% do mercado brasileiro). Seria o mesmo que cada brasileiro encher o tanque com combustível adulterado em uma a cada nove vezes que abastecer o seu carro.
O setor de cosméticos e perfumaria também é um segmento cuja tributação é muito elevada – em média, 68% para produtos nacionais e 79% para produtos importados. Em contrapartida, a informalidade (com produtos adulterados ou falsificados) representa uma média de 22% desse mercado. Isso significa que, a cada cinco cremes faciais, perfumes, protetores solares e similares vendidos no Brasil, um é produto falsificado. Alguns deles apenas sem eficácia, mas há ainda casos em que a utilização pode causar mal à saúde, provocar queimaduras de pele ou mesmo risco de morte.
Para aparelhos celulares nacionais, a tributação representa, em média, 37%. Por sua vez, para smartphones importados, a carga tributária incidente é, em média, 68%. “Provavelmente, quase todo mundo já ouviu alguém fazendo aquela conta de que, com o valor pago por um smartphone de última geração no Brasil, é possível comprar passagens para o exterior, se hospedar por alguns dias, adquirir o aparelho por lá e ainda voltar com algum trocado”, destaca Denerson Rosa. O mercado de telefones celulares sem procedência regular corresponde a cerca de 26% do total. Mas, quando analisados os aparelhos de maior valor, os produtos sem procedência regular chegam a mais de 50% do total.
O tributarista afirma que esses mercados clandestinos e irregulares, na prática, se misturam. “Eles não são universos separados. O mesmo insumo, o mesmo intermediário ou a mesma rota de transporte pode atender diferentes atividades ilícitas”, explica. Segundo ele, os produtos químicos usados para adulterar combustíveis, por exemplo, muitas vezes são os mesmos, ou de composição muito próxima, dos que servem para falsificar perfumes ou bebidas destiladas. “É uma lógica de reaproveitamento e adaptação, e é justamente isso que torna o enfrentamento tão complexo”, conclui.