Se em uma conversa sair a expressão ‘devedor contumaz’, imediatamente todos vão associar ao setor privado. É um rótulo fácil. Os mais informados vão ampliar a explicação: são as empresas que usam a sonegação e a dívida tributária como modelo de negócio, de forma recorrente e premeditada. Para atualizar, vai citar que o Congresso aprovou recentemente a LC 125/22, que trata deste assunto e cria regra mais rígidas para esse tipo de contribuinte fraudador. Aliás, esse projeto aprovado no Legislativo foi enviado para sanção presidencial.
Até aí, ok. É notícia. Mas vamos ampliar uma reflexão e pegar emprestado a tal expressão ‘devedor contumaz’ e avançar, abordando, além do malefício para o mercado privado desse ato fraudador, mas também de um outro viciado em dívidas: o setor público. A abordagem traz uma panorâmica com opiniões de várias ciências: política, jurídica, social e comunicação.
A lei do devedor contumaz, que deve ser sancionado em breve, cria o Código de Defesa do Contribuinte e inclui programas de conformidade para incentivar bons pagadores. A nova legislação é dura, legítima e deve ter efeito positivo sobre a concorrência em alguns setores privados. No entanto, partindo do princípio que as leis são mal escritas no Brasil – como aponta sabiamente nosso colunista, advogado e professor Carlos André Pereira Nunes – tem-se aí um alto risco.
Especialistas citam que o projeto define mal quem é quem. Abre-se uma brecha para o conceito amplo, elástico e de possíveis interpretações subjetivas. Tremem as paredes dos tribunais e abre-se um sorriso nas poderosas bancas de advogados: segurança jurídica em xeque e potencial judicialização.
Mas, antes de o leitor reclamar (com razão) que não era este o tema proposto, vamos virar o disco e evoluir para a manchete desta matéria: O maior devedor contumaz é o setor público.
Essa pivotada abre um olhar para quem aponta o dedo.
Boa parte das características descritas do devedor contumaz no projeto contra fraudes do setor privado também, com devidas adaptações, se encaixa no perfil do setor público.
De forma geral, o devedor contumaz privado seria aquele que acumula débitos tributários elevados e recorrentes; não demonstra intenção real de regularização; usa discussões administrativas e judiciais apenas para ganhar tempo; mantém atividade econômica normal, mas não recolhe tributos de forma sistemática; e, obtém vantagem competitiva ao não pagar impostos que concorrentes pagam.
Espelhando essas descrições e adaptando, o que reflete ao devedor contumaz público?
“Acumula déficits fiscais recorrentes e elevados”: gasta mais do que ganha e soma dívidas sobre dívidas.
“Não demonstra intenção real de regularização”: uma reforma administrativa passa longe das conversas no Plenário ou no cafezinho do Congresso ou nos palácios.
“Usa discussões administrativas e judiciais apenas para ganhar tempo”: esqueletos de desarranjos públicos não faltam nas contas públicas e se acumulam na Justiça e no Parlamento (por onde passam ou se constroem essas minas explosivas).
“Mantém atividade econômica normal”: sim, sem mudar um músculo da face. Nem parece que têm dívidas bilionárias quase incalculáveis e impagáveis na última linha de cada balanço (fiscal).
As semelhanças entre esses devedores contumazes, público e privado, são tamanhas que se pode dizer que são gêmeos em inadimplência. Diferem nos conceitos contábeis, pois são agentes econômicos distintos, mas, com suas dívidas, representam um tumor para a economia brasileira.
Além da dívida fiscal, há ainda a dívida social. Amontoam bilhões em receitas tributárias, recordes recorrentes mesmo quando a economia está paralisada, mas entregam serviços de qualidade duvidosa em praticamente todas as áreas, principalmente no básico: saúde, educação e segurança.
Como devedor contumaz que é, boa parte do que arrecada vira pagamento de dívida e custeio de uma máquina pesada e suja. A seguir, visões diferentes do mesmo problema.
Quem é o verdadeiro devedor contumaz?

Marcos Marinho, Professor, mestre em Comunicação, estrategista político e apresentador do programa Política e Cotidiano, na PUC Tv.
Há três anos, o Projeto de Lei Complementar 125/22 aguarda aprovação. Enquanto isso, o Brasil perde R$ 200 bilhões em dívidas de 1.200 empresas que transformaram a sonegação em modelo de negócio. O Grupo Refit, sozinho, deve R$ 26 bilhões aos cofres públicos.
Mas e o Congresso? Bem, o Congresso tem pressa em outras coisas. Enquanto ministros discursam apaixonadamente sobre o projeto de lei, como ferramenta para combater o crime organizado e proteger a concorrência leal, o Congresso sussurra nos corredores: “Espera aí, deixa eu ver se meus amigos estão nessa lista de devedores contumazes”.
Vamos ser honestos: esta é a verdade incômoda que ninguém quer dizer em voz alta. O Congresso tem medo, porque muitos de seus membros, seus financiadores e seus apoiadores políticos estão conectados a empresas que vivem à margem da legalidade fiscal. E aqui está o ponto que ninguém quer discutir: o Brasil construiu um sistema tributário que premia a sonegação. Metade dos que aderem aos programas de refinanciamento fica inadimplente novamente.
O Congresso aprovou programas de perdão fiscal que custaram R$ 176 bilhões em dez anos, e renúncias de R$ 544 bilhões anuais. Agora, o PLP chega à votação, uma lei tímida demais, com um piso de 15 milhões, que deixam descobertos milhares de devedores contumazes, e critérios subjetivos que garantem judicialização. Uma lei que promete muito, mas pode não resolver nada.
E aqui está o verdadeiro problema: o Congresso não quer resolver. Quer parecer que está resolvendo, quer que você acredite enquanto protege seus interesses particulares. O Executivo, com o projeto de lei do “devedor contumaz”, ganharia ferramentas para punir devedores de forma ágil, e o Congresso teme isso. Teme um Executivo forte, teme perder a sua capacidade de negociar e fazer acordos. É uma dança antiga. É a política brasileira em seu estado mais puro.
A resposta para a pergunta que inicia este texto é simples: a maioria das pessoas não entende o sistema, e quem entende lucra com ele. O projeto do “devedor contumaz” é necessário, mas é apenas mais um dos sintomas de uma doença maior: a captura do Estado por interesses particulares.
Enquanto há essa queda de braços entre o parlamento e o Palácio do Planalto, o devedor contumaz segue sonegando; o Congresso segue fingindo que quer combater; e o Brasil segue perdendo bilhões, que poderiam estar em educação e saúde.
Talvez seja hora de perguntar: quem é o verdadeiro devedor contumaz: a empresa que não paga impostos ou o Congresso que não cumpre seu dever constitucional?
Suspeito que a resposta deixe muita gente desconfortável.
O maior devedor contumaz do Brasil é o próprio Estado

Dênerson Rosa, Advogado, fundador da Sociedade de Advogados Dênerson Rosa, mais de 20 anos de atuação em Direito Tributário e Empresarial.
O Brasil acaba de avançar na repressão ao chamado devedor contumaz, aquele contribuinte que deixa de pagar tributos de forma reiterada, estratégica e estrutural. A justificativa é conhecida e, em tese, correta: proteger a concorrência, preservar a arrecadação e combater práticas que distorcem o mercado. O problema começa quando se olha para o espelho institucional. Nesse reflexo, quem aparece como o maior devedor contumaz do país não é o contribuinte privado, mas o próprio Estado brasileiro.
No mundo, praticamente não existe nada comparável ao sistema de precatórios. O Brasil criou um modelo em que decisões judiciais definitivas contra o poder público não geram pagamento imediato, mas ingressam em uma fila constitucional, muitas vezes com espera que ultrapassa uma década. Não se trata de exceção, emergência fiscal ou colapso momentâneo. Trata-se de um sistema permanente, previsível e normatizado de postergação do pagamento daquilo que já foi reconhecido judicialmente como devido.
A comparação internacional é desconfortável. Os países que mais se aproximaram do Brasil em termos de atraso estrutural no pagamento de condenações judiciais foram Rússia, Ucrânia e Moldávia. Nos dois primeiros casos, em meio a guerras, crises profundas e colapsos institucionais. Ainda assim, nesses países, o atraso foi tratado como patologia do Estado, gerando condenações internacionais e exigência de reformas. No Brasil, em plena normalidade democrática, sem guerra, sem ruptura institucional, o atraso virou política pública e foi sendo sucessivamente constitucionalizado.
Se um contribuinte privado adotasse a mesma lógica do Estado brasileiro, deixaria de pagar uma dívida reconhecida, empurraria o débito por anos, imporia unilateralmente parcelamentos, corroeria o valor pelo tempo e ainda alteraria as regras do jogo no meio do caminho. Seria imediatamente enquadrado como devedor contumaz. O Estado, no entanto, faz exatamente isso e ainda se coloca como fiscal da moralidade alheia.
A nova legislação contra devedores contumazes nasce, portanto, sob um paradoxo profundo. O Estado exige adimplência imediata, integral e coercitiva do contribuinte, mas se reserva o direito de inadimplir sistematicamente suas próprias obrigações judiciais. O poder de tributar se exerce com rigor absoluto, enquanto o dever de pagar se submete à conveniência orçamentária e política.
Isso não é apenas incoerente. É institucionalmente corrosivo. A legitimidade do sistema tributário depende de reciprocidade, previsibilidade e confiança. Quando o Estado se comporta como o maior devedor contumaz do país, ele esvazia o discurso moral que sustenta a repressão ao inadimplemento privado.
Antes de rotular contribuintes como contumazes, talvez fosse necessário enfrentar o elefante na sala. No Brasil, o calote mais organizado, duradouro e juridicamente sofisticado não vem do setor privado. Ele vem do próprio Estado.
O cobrador deve 80 vezes mais que o devedor

Leandro Resende, é formado em Jornalismo e Economia, graduando em Ciências de Dados, mestre em marketing com viés em comportamento do consumidor e publisher da Leitura Estratégica e do portal STG News.
O adesivo colado na testa de “devedor contumaz” fica com os empresários – sempre sob suspeita e, mesmo em casos bem específicos como este, a pecha cola de forma generalizada. Um rótulo grudento que não sai nem com ácido.
Mas é velho esse grupo aos empresários, que desfilam ano após ano como inimigos do povo. Muito por não terem o mínimo controle da narrativa social. O empresariado se comunica mal e não dialoga bem com a sociedade – falam línguas diferentes.
Na sombra, está ali o setor público, apontando o dedo, blasfemando e rindo da pobreza de soluções que o empresariado tem para este câncer que o consome. Engolindo seco e em silêncio, assume e se veste com mais um adjetivo: “Devedor contumaz” – mesmo que este grupo nefasto na economia seja de 1.200 empresas em um universo de 25 milhões de CNPJs (0,0004%), o discurso tem amplitude larga e afeta a desgastada imagem do empreendedor no subconsciente da sociedade.
Mas a narrativa ignora um fato incômodo: o maior devedor contumaz do País é o próprio setor público. O voraz cobrador é também um doutor em dever. Não por fraude ou ilegalidade, mas por um comportamento estrutural que se repete há décadas – e sem o menor constrangimento.
Na primeira dimensão, o setor público é um devedor contumaz das próprias contas. Gasta mais do que arrecada, expande a dívida de forma recorrente e trata o desequilíbrio fiscal como se fosse herança maldita ou um fenômeno natural. Não é. É escolha.
O endividamento cresce, os juros consomem parcela relevante do orçamento e a transparência é mínima sobre limites, riscos e consequências. O Estado brasileiro age como aquele devedor crônico que sempre promete ajuste no próximo ciclo, mas nunca muda o padrão de gastos.
Vamos aos números: O valor total da dívida pública bruta do Brasil, que inclui União, Estados e municípios, atingiu quase R$ 10 trilhões em outubro de 2025. Só o governo federal deve R$ 8,2 trilhões e rombo com juros da dívida soma R$ 1 trilhão em doze meses. Contumaz com louvor.
Se a reforma tributária foi um reforço gigante de caixa, um remédio para o setor público e, como se prevê, uma boa dose de veneno para o privado, pois não vai ampliar o peso tributário e vai amarrar de vez pernas e mãos da economia, enquanto a reforma administrativa está congelada, pois pode ser um veneno para este modelo público e um remédio para o privado. Assim sendo, a mesma só será realizada quando se inverter essa ordem: o projeto ser um reforço e validação do modelo público atual e um placebo para a sociedade.
A normalização do déficit do devedor público contumaz foi o maior troféu dos corruptos e a coroação dos sanguessugas. Virou política pública. Boa parte dos emergentes do Centrão, da esquerda raivosa e da direita bravinha virou o sub-20 da seleção brasileira do suborno e são treinados para manter o status conquistado pelos líderes.
As duas ou três últimas décadas de concessões ao Congresso para evitar, conter ou propor impeachments deram a faca afiada e o pescoço do Executivo para o circo das emendas, dos orçamentos irreais, das exceções e nomeações bisonhas.
Sem previsibilidade fiscal, o ajuste tomba, a inflação fica pressionada e o crédito caro. A conta fecha com a forte ascensão dos lobistas – de facções criminosas a setores sensíveis – e o ininterrupto ataque à imprensa, combalida pela audiência das divertidas e pacatas redes sociais. Menos denúncias fundamentadas e mais memes criativos.
A dívida pública contábil é uma árvore. A dívida pública social é uma floresta. São séculos de desprezo e tratamento escravocrata para a maior parte da população. As raízes dessa dívida contumaz são profundas. Cobra muito, sempre e primeiro. Entrega pouco, mal e tarde.
O alto custo do desarranjo público cai no colo do privado – diariamente. Mundo da incoerência. O Estado cobra disciplina fiscal do contribuinte, mas convive com indisciplina crônica nas próprias contas. Um Fisco raivoso com o contribuinte e tribunais de contas de fachada, muitas vezes, a casa de políticos velhos e sem votos que estão ali a advogar pela gratidão da indicação.
Essa relação dominada por uma casta nobre, hereditária e violenta, obriga uma sociedade assalariada e mal remunerada a comprar caro saúde, segurança e educação privadas, porque a maior parte dos R$ 4 trilhões arrecadados em tributos anuais (somando as esferas federal, estadual e municipal) são insuficientes para pagar juros a bancos e os incontáveis contratos públicos escusos.
A doente dívida contumaz privada vira troco de padaria perto da epidêmica fome do devedor contumaz público. Um é bandido e outro agente estatal, oficial, eleito e validado pelos três Poderes . Ambos, público e privado, são insaciáveis e estão dando cadeira e se associado a perigosas máfias e facções. Uma hora a casa cai.
A grande inversão e o verdadeiro devedor contumaz

José Elias Domingos Costa Marques, Mestre em Ciência Política (UFSCar – SP). Doutor em Sociologia Política (UFG – GO). Professor efetivo – Instituto Federal de Goiás
Há uma neblina proposital cobrindo o debate econômico no Brasil, uma espécie de semântica do calote desenhada para confundir a opinião pública. Recentemente, setores da mídia tentaram emplacar a narrativa de que o Estado brasileiro seria o grande “devedor”, uma entidade supostamente irresponsável que gasta mais do que pode. Essa retórica não é apenas um erro técnico; é um projeto político para deslegitimar o investimento social que ele deve fazer. A verdade jurídica e sociológica, contudo, é muito diferente e foi recentemente iluminada pela aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLP) 125/2022.
O PLP 125/2022 restabelece a verdade jurídica ao definir legalmente o que é o devedor contumaz: não o Estado, mas entes privados que fazem do não pagamento de tributos uma estratégia de negócio predatória e dolosa. Estamos falando de setores que acumulam dívidas bilionárias como vantagem competitiva desleal, muitas vezes ligados a esquemas ilícitos, enquanto o Estado é demonizado por contrair dívidas para gerir a macroeconomia e o absurdo tripé-macroeconômico. Tentar colar esse rótulo no setor público é um ilusionismo para criminalizar o gasto governamental e justificar a austeridade.
A ironia é cruel. Enquanto o tal mercado exige rigor fiscal do governo, o DGT (Receita Federal) estima que centenas de bilhões de reais deixem de entrar nos cofres públicos anualmente devido a gastos tributários, no caso, isenções e benefícios fiscais opacos concedidos a setores escolhidos, muitas vezes sem que a sociedade saiba o retorno social gerado. Por isso, é absurdo dizer que o Estado estaria quebrado, porque gasta com saúde e educação. Sabemos que isso é muito óbvio. O que acontece, e isto é um fenômeno da cultura política e histórica do Brasil, é que o Estado é capturado por uma elite financeira que drena o orçamento por meio dos juros da dívida pública, transformando a arrecadação de todos em lucro para poucos.
Precisamos inverter essa lógica perversa. O Estado não é um fardo, mas a única ferramenta capaz de pagar a verdadeira dívida pendente deste país: a dívida social histórica com a população marginalizada. Ao mirar nos sonegadores profissionais com o PLP 125/2022, damos um passo importante, mas é preciso ir além. É urgente reafirmar o papel do Estado como indutor do desenvolvimento, garantindo que a riqueza nacional sirva à justiça redistributiva e não à especulação. O verdadeiro calote não é o déficit fiscal; é a manutenção da miséria e pobreza para a maioria da população em um país rico.













