Vivemos uma vigília ininterrupta que deixaria George Orwell de queixo caído. Dia e noite: câmeras em postes, comércio e semáforos, gente com celulares filmando cada anomalia ou ato estranho; IPs de sites e ligações telefônicas registradas; curtidas no Instagram; CPF e carteira digital; todas as compras no cartão; dados do PIX; cadastro do INSS; todas as conversas nas dezenas de aplicativos das Big Techs, incluindo áudio, vídeo e fotos, e, por aí, vai.
Tudo deixa rastro. No fim, estamos falando de dados. É você indo e vindo neste enorme emaranhado de números, textos, documentos e imagens, coletados minuto a minuto, criando um perfil comportamental, de consumo, eleitoral e psicossocial da sua pessoa.
Mas, pouco ou nada se falou de uma tal Lei Geral de Empoderamento de Dados (LGED), a Projeto de Lei nº 234/2023, que dispõe sobre o Ecossistema Brasileiro de Monetização de Dados. E é do interesse de todos. Debaixo de um quieto, a danada tramita no Congresso para criar o mercado brasileiro de dados pessoais.
Vai virar uma sopa de letrinhas, mas se esforce aí. O foco desta LGED é venda. Dá aos titulares o direito de propriedade e controle sobre seus dados para comercialização. E a LGED vai na linha da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)?
Muito pelo contrário. Uma lei protege e a outra, vende. A LGPD foca na proteção dos dados e na privacidade e a LGED regula a exploração econômica dos dados, permite a monetização, especialmente o compartilhamento de dados para fins comerciais.
O primeiro desafio da nova lei e se integrar com as demais leis, principalmente com a de proteção – devendo este sofrer modificações, como também o Marco Civil da Internet. São movimentos tensos em regras que já foram polêmicas em suas discussões.
Várias questões estão abertas – e ainda escondidas do grande público. Especialistas apontam que a conversa se dá entre empresas de tecnologia e poder público, sendo que o tripé desta relação não tem sido contemplado no debate: os titulares dos dados. A complexidade do tema leva a uma série de possibilidades ignoradas -propositalmente ou não -, gerando futuros esqueletos, falta de regras claras e construção de incertezas, além da prevalência de interesses mercadológicos, o que potencializa danos futuros, como manipulação, vazamento e uso indevido de dados.
Quando chegar a hora (que não tem mais como mudar quase nada), vão envolver a sociedade com uma narrativa salvadora, revolucionária e de novos tempos. Mas os benefícios e garantias de uso dos dados por setores como o de tecnologia, plataformas digitais, bancário, comunicação, jogos, entre outros, já estarão previamente negociados e alinhados às novas regras?
Especialistas apontam que há uma década, a monetização de conteúdos nas plataformas digitais, feito sem muito debate, abriu espaço para fomentar o descontrole e excessos das políticas de engajamento a qualquer custo e otimização de algoritmo sem regras claras, polarização política, desinformação e modelos de negócio que afetam a cognição de todas as faixas etárias. Faz necessário um grande debate social multidisciplinar, como sugere representantes do LAPIN, ELA-IA, do terceiro setor e academia, incluindo governo e plataformas de tecnologia. Se demorar, a boiada dos dados vai passar.
Leandro Resende – editor-chefe da Revista Leitura Estratégica
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