Por Rafael Vaz
Antes da ascensão dos e-commerces e muito antes de “moda sem gênero” ganhar espaço no debate público, Goiânia recebeu sua primeira loja inteiramente dedicada ao público LGBTQIAPN+. A Inhaí? Look & Fashion, criada pelos empresários Ademar Moura, Jullyano Mendes e Fábio Dias, marcou um momento raro de ruptura cultural na cidade.
“A criação da marca foi um grande marco na minha vida pessoal e profissional. Enfrentamos barreiras importantes e trouxemos algo realmente novo para o mercado de Goiânia e para o mercado nacional. Era uma loja sem divisão de gênero, com um mix de produtos que não existia até então”, afirma Ademar Moura.
A abertura veio acompanhada de uma escolha que, até hoje, muitos negócios evitam: assumir publicamente o arco-íris como identidade visual. “É importante lembrar que a Inhaí? surgiu antes da pandemia, quando ainda não existia a explosão do e-commerce e das lojas que facilitavam o acesso a produtos diferenciados. Isso foi um marco para Goiânia, para o País e para a minha trajetória”, completa.
Na época, a marca enfrentava também o desafio de produzir peças próprias, com tecidos e acabamentos difíceis de encontrar. “O primeiro obstáculo era o preconceito. Era uma loja com o arco-íris na fachada, sem distinção entre masculino e feminino, e com um posicionamento claro de acolhimento ao público LGBTQIAPN+. Esse era o maior desafio”, lembra. “Depois vinha a produção: as roupas eram, em sua maioria, de criação própria. Era preciso encontrar bons materiais, desenvolver modelagens e achar, em Goiânia, quem fosse capaz de produzir peças cheias de detalhes.”
Quando o mercado muda (e o mundo também)
A pandemia transformou radicalmente o varejo e, para negócios pioneiros como a Inhaí?, essa mudança foi decisiva. “Lutamos bastante antes de aceitar o fechamento das lojas. A marca se destacava antes da pandemia, quando as pessoas não tinham acesso facilitado a plataformas como Shein, AliExpress e Shopee. Essas empresas tornaram muito acessíveis peças com paetês, telas ou modelagens diferentes, algo que antes era raro”, explica.
Após a pandemia, a equipe ainda tentou manter o negócio, mas ele já não sustentava o mesmo caráter inovador. As lojas de rua perderam força, e a marca dependia fortemente da experiência física. “Tivemos unidades no Bougainville, na Rua 15 e no Marista, mas o modelo deixou de ser sustentável”, relata.
Ademar destaca que fatores externos podem definir o futuro de um empreendimento mesmo quando ele está estruturado. “O aprendizado é que, mesmo com um negócio saudável, fatores alheios à gestão podem determinar totalmente o rumo”, avalia.
Apesar dos desafios, a marca deixou sua marca na moda local. “Deixamos um legado. Fomos a primeira loja em Goiânia a fazer lives durante a pandemia. Participamos de feiras, palestras e tivemos lojas em dois shoppings. A marca existe até hoje nas redes sociais. Demos uma pausa, mas quem sabe possamos ressignificar tudo isso no futuro”, conclui.

BOX 1 — O Poder econômico LGBTQIAPN+
US$ 320 bilhões
Movimentação anual do turismo LGBTQIAPN+ no mundo.
US$ 630 bilhões
Projeção global para 2033.
R$ 18,7 bilhões
Tamanho do mercado LGBTQIAPN+ brasileiro no ano móvel até o 1º trimestre de 2024.
+39% em relação ao ano anterior.
BOX 2 — Consumo e e-commerce
27% a mais
Gasto médio dos lares LGBT+ no e-commerce em comparação aos demais domicílios.
R$ 363
Ticket médio dos lares LGBT+ no comércio eletrônico.
(Lares não LGBT+: R$ 286)
Produtos mais comprados: itens de giro rápido, com destaque para bebidas alcoólicas.
BOX 3 — Empreendedorismo LGBTQIAPN+
55%
Da comunidade LGBTQIAPN+ empreende ou tem potencial empreendedor.
3,7 milhões
De pessoas LGBTPQIAPN+ já lideram negócios no Brasil.
Isso representa 24% dos 15 milhões de brasileiros que se identificam como LGBTP.
11%
Estão criando um negócio.
20%
Pretendem abrir uma empresa nos próximos três anos.
19%
Entre os que já empreendem, têm no negócio sua principal atividade.
BOX 4 — Setores e trajetória
45%
Já tiveram outro negócio antes.
14%
Atuam em Entretenimento e Cultura — contra apenas 2% entre pessoas não LGBT+.
BOX 5 — Perfil dos empreendedores
• Idade: a partir de 25 anos, em sua maioria jovens adultos.
• Escolaridade: predominância de nível superior.
• Renda: maioria com 3 salários-mínimos ou mais.
• Cor/raça: 30% brancos, 22% pardos ou pretos.
Um segmento bilionário
O cenário vivido por empreendedores LGBTQIAPN+ contrasta com o potencial econômico do segmento. O relatório Rainbow Homes, da NIQ, mostra que o mercado LGBTQIAPN+ brasileiro movimentou 18,7 bilhões de reais no período encerrado no primeiro trimestre de 2024, crescimento de 39% em um ano.
O estudo aponta ainda que lares LGBTQIAPN+ gastam, em média, 27% a mais no e-commerce, com ticket médio de 363 reais, frente aos 286 reais dos demais domicílios. Já pesquisa do Sebrae indica que 55% da comunidade LGBTQIAPN+ empreende ou tem potencial empreendedor, e que cerca de 3,7 milhões de pessoas comandam um negócio no País.
No cenário internacional, consultorias de economia do turismo estimam que o turismo LGBTQIAPN+ movimenta mais de 320 bilhões de dólares ao ano, com projeções de forte crescimento na próxima década.
O próprio Rainbow Homes mostra ainda que esse empreendedorismo tem características específicas: concentra-se em pessoas a partir dos 25 anos, com ensino superior e renda acima de três salários mínimos. Setores como Entretenimento e Cultura atraem, proporcionalmente, muito mais empreendedores LGBTQIAPN+ que entre pessoas não LGBTQIAPN+, reforçando o peso econômico e cultural desse grupo.
Pressões internacionais e abandono corporativo
A trajetória de Ademar revela que inovar é possível, mas o contexto global tornou o momento especialmente difícil para negócios ligados à diversidade. O presidente da Câmara de Comércio e Turismo LGBT do Brasil, Ricardo Gomes, explica.
“O momento é péssimo. Tivemos de lidar com política internacional. O atual presidente dos Estados Unidos nos afetou diretamento, porque mantemos um programa de compras inclusivas. Muitas empresas que seguiam modelos americanos recuaram para evitar desgaste.”
Segundo ele, houve orientação do governo americano para que representações diplomáticas não contratassem empresas ligadas à diversidade. “Isso gerou efeito cascata. Empresas europeias também abandonaram o programa. Algumas chegaram a entregar declarações dizendo que não trabalhavam com diversidade para não perder contratos”, relata.

O impacto atingiu grandes corporações. “A Meta, por exemplo, anunciou o fim de seus programas de diversidade, equidade e inclusão. Quando o assunto é LGBTQIAPN+, isso pesa ainda mais. Há preconceito e condenação social. É um momento complexo para negócios da comunidade”, afirma.
Algumas empresas tentaram manter iniciativas ajustando nomenclaturas, mas o apoio caiu. “Desde o início do ano, perdemos muito. O termo ‘diversidade’ virou alvo. Muitas empresas evitam o tema para não se indispor com o governo americano”, diz.
Turismo resiste
Apesar dos retrocessos, o turismo segue como uma área que ainda oferece oportunidades. “O setor menos complicado hoje é o turismo. Hotéis e destinos querem atrair esse público, um dos mais desejados no mundo. Há destinos comprometidos com a diversidade há muitos anos”, destaca Ricardo.
Mesmo assim, a inclusão institucional avança lentamente. “Tentamos por anos integrar o Conselho de Turismo do Ministério do Turismo, do Ministério do Turismo, e só conseguimos há dois anos, mesmo representando um segmento tão relevante”, afirma.
No empreendedorismo, a falta de políticas públicas é evidente. “Não existe nada voltado ao empreendedorismo LGBTQIAPN+ no Brasil. O País precisa disso. Perdemos o pouco que havíamos avançado no governo Jair Bolsonaro. Não havia diálogo”, critica.
Para ele, um passo estratégico seria a adoção de compras inclusivas pelo Estado. “Seria fundamental que o governo também adotasse compras inclusivas. Esse seria o começo de uma mudança importante”, conclui.













