Por Dênerson Rosa
Vou começar do jeito mais honesto possível: Adivinha quem vai ficar com a maior conta para pagar? Não é o super rico, é o supermédio.
Não vou discutir aqui se é “justo”, “correto” ou “eficiente” tributar dividendos. Isso é debate legítimo — e interminável. O que importa, neste texto, é outra coisa: o modo como a Lei nº 15.270, de 26 de novembro de 2025, desenhou a cobrança. E, quando o desenho nasce apressado, com encaixes improvisados, o resultado costuma ser previsível: distorções, tratamento desigual, incentivos ruins e, no fim, judicialização.
A própria narrativa oficial é conhecida: “alívio” para muitos (isenção/reduções) e “compensação” com aumento de carga para “altas rendas”. Até aí, política pública. O problema é que, no capítulo de “altas rendas”, a lei fez um pacote que mistura retenção mensal sobre dividendos com tributação mínima anual — e essa combinação, do jeito que está, fere a lógica do Imposto de Renda tal como a Constituição manda que ele seja informado: generalidade, universalidade e especialmente progressividade.
Como quase tudo o que se faz de forma atabalhoada e afoita em Brasília, o resultado final é uma anomalia que agride a lógica e flerta com a inconstitucionalidade. A premissa era simples: quem ganha mais paga mais. A execução, no entanto, foi desastrosa — e a conta, cedo ou tarde, vai bater na porta do Judiciário.
Basta olhar a tabela progressiva aprovada para perceber que a lei criou uma distorção grave na “zona de transição”. Para poupar os primeiros R$ 600 mil e, ainda assim, empurrar a alíquota média até 10%, quando os rendimentos chegam a R$ 1,2 milhão, o legislador precisou impor uma aceleração tributária artificial — e desproporcional.
Até aqui, pode parecer simples: “tudo bem, começa em zero e vai subindo até 10%”. Só que, no Imposto de Renda, não basta ter um número máximo lá no topo. O que importa é o caminho até chegar lá. O esperado é uma subida gradual, que faça sentido para quem está pagando — como uma rampa, rampa -, em que o imposto aumenta aos poucos, sem sustos.
Quando a gente coloca isso na ponta do lápis, a distorção aparece. Se a promessa é “até R$ 600 mil não paga nada”, mas, ao chegar em R$ 1,2 milhão, o total já pode dar R$ 120 mil de imposto (10% de R$ 1,2 milhão), alguém tem que bancar essa mudança. E quem banca é justamente o trecho do meio: o que vai de R$ 600 mil a R$ 1,2 milhão. Na prática, essa “fatia” acaba sendo mordida com uma força bem maior (perto de 20%) para, no total, a conta fechar em 10%. Depois que passa de R$ 1,2 milhão, a regra fica mais “leve”: o dinheiro que entra a mais passa a ser tributado a 10%.
O resultado é que a lei pesa mais em quem acabou de cruzar a linha dos “muito bem remunerados” — empreendedor em crescimento, profissional que subiu de patamar, gente que chegou agora nesse nível — do que em quem já está muito acima. No discurso, é “quem ganha mais paga mais”; no desenho, vira algo como “quem está chegando apanha mais”.
E isso não é só uma discussão de conceito. Quando existe um ponto em que o imposto dá um salto, muita gente passa a tentar não cair exatamente nesse “degrau”: divide recebimentos, reorganiza pagamentos, antecipa ou adia distribuição, procura outra forma de receber. A regra acaba estimulando manobras — e manobras viram dúvida, fiscalização e disputa.
A distorção também aparece numa coisa bem prática: a retenção mensal de 10% sobre dividendos vale por empresa e por mês, e só só existe quando o mês passa de R$ 50 mil. O salto é tosco: quem recebe R$ 49 mil não perde nada; quem recebe R$ 51 mil perde 10% do mês inteiro e pode acabar com menos dinheiro no bolso. E sem olhar o “ano todo”: dá para fechar o ano igual e ter descontos diferentes só pelo jeito de receber.
“Ah, mas depois acerta na declaração anual”, alguns dirão. Em teoria, sim. Na prática, isso significa ficar meses com dinheiro a menos no bolso, esperar restituição, lidar com compensações que nem sempre são simples e, quando o cálculo gerar dúvida, discutir com o Fisco. Cada diferença vira contestação. Cada contestação vira recurso. E o resultado mais provável é o de sempre: mais judicialização num Judiciário já saturado por litígios fiscais.
Moral da história: não era inevitável ser assim. Dá para tributar dividendos e dá para criar regra mínima; o que não dá — sem custo institucional altíssimo — é fazer isso com régua torta e chamar de sistema. Em tributação, “atabalhoado” não é apenas defeito estético: é custo de conformidade, desigualdade prática, perda de legitimidade e judicialização programada. Quando a lei não fecha pelas próprias premissas, sobra para o Judiciário a responsabilidade de fechar a conta — o que normalmente é feito tarde, caro e aos pedaços.

Dênerson Rosa,
Advogado, fundador da Sociedade de Advogados Dênerson Rosa, mais de 20 anos de atuação em Direito Tributário e Empresarial.














