Por Rafael Vaz
O Brasil assiste a uma expansão acelerada dos aplicativos de apostas digitais, que prometem ganhos rápidos com esportes e cassinos virtuais. Embora ainda não haja registro formal de reclamações diretas contra esses aplicativos, o aumento de pessoas superendividadas em busca de renegociação acende o alerta de órgãos de defesa do consumidor.
Para o coordenador da Escola Estadual de Defesa do Consumidor do Procon Goiás, Henrique Teixeira, o crescimento desse fenômeno não é casual. “Não temos observado reclamações diretas contra os aplicativos, mas sim um aumento de procura de pessoas superendividadas buscando renegociações. Apesar disso, estamos atentos aos aplicativos porque o número de pessoas superendividadas está aumentando, e isso não é coincidência”, afirma.
Ele explica que os apps usam mecanismos exploratórios para captar atenção e vender a ilusão de enriquecimento rápido. “O consumidor empobrecido é muito vulnerável e as plataformas não têm qualquer consideração. Ele é iludido com a ideia de enriquecimento rápido, e isso faz com que se endivide ainda mais”, explica.

Segundo o coordenador, as pessoas com esse tipo de vulnerabilidade retiram dinheiro de áreas importantes, como moradia, alimentação e saúde, para alimentar as apostas. “Com isso, há uma série de problemas, como depressão, desespero e outros problemas de saúde mental”, avalia.
Para Henrique, o Código de Defesa do Consumidor é essencial para proteger usuários, mesmo diante do desafio do mundo digital. “Há dispositivos uma infinidade de situações, inclusive contra casas de apostas. Qualquer comportamento que explora o consumidor é condenável”, pontua.
O Procon Goiás tem atuado na prevenção e disseminação de informações sobre o assunto. “É importante trazer o consumidor à realidade de que essas apostas não podem ser encaradas como uma forma de enriquecimento rápido. Há um problema sistêmico na sociedade, e há essas plataformas que agem como predadoras. O consumidor é vulnerável e o Estado tem que protegê-lo”, diz.
Apesar dos avanços nas ações de prevenção, ainda há desafios para a fiscalização das apostas virtuais. “A legislação existente que permitiu essas apostas, sem criar regras mais restritivas é um grande gargalo. Estamos lidando com um grande universo digital e há uma disparidade de recursos”, relata Henrique.
Zona cinzenta: legislação e responsabilidade jurídica
A advogada Julianna Augusta, especialista em Direito do Consumidor, afirma que aplicativos e sites de apostas, como o “Tigrinho”, operam em uma zona legal nebulosa. Segundo ela, o Brasil ainda não possui uma regulação completa sobre jogos e apostas virtuais, o que leva essas plataformas a funcionarem com licenças emitidas no exterior, em países como Curaçao ou Malta.
“Elas não são exatamente legais, mas também não estão formalmente proibidas. É um tipo de negócio que aproveita brechas, porque a legislação brasileira ainda não consegue acompanhar a velocidade com que esses sites surgem e se multiplicam. O ‘tigrinho’, por exemplo, é desenvolvido por uma empresa estrangeira, sem CNPJ no Brasil, o que já mostra como é difícil para o Estado fiscalizar ou coibir de forma efetiva”, explica.

Quando o usuário perde dinheiro ou é vítima de fraude, a responsabilização é possível, mas complexa. Julianna lembra que o Código de Defesa do Consumidor prevê a responsabilidade objetiva para o fornecedor de produtos e serviços, ou seja, ele responde independentemente de culpa quando há falha na prestação do serviço ou informações enganosas.
Contudo, empresas sem sede no Brasil, sem CNPJ e sem representante legal dificultam a ação direta do consumidor. Nesses casos, o caminho é acionar plataformas intermediárias, bancos digitais, operadoras de pagamento ou até os influenciadores que promovem os jogos. “É uma aplicação prática da teoria do risco do empreendimento: quem lucra com a atividade deve também arcar com os prejuízos que ela causa”, detalha.
A advogada reforça que o CDC se aplica plenamente às apostas on-line. “A relação é claramente de consumo. De um lado está o jogador, que é o consumidor, e do outro, a empresa fornecedora do serviço digital. O usuário tem direito à informação clara, à segurança, à transparência e à reparação de danos. Se ele foi enganado, se o aplicativo funcionou de forma enganosa ou se a plataforma não entregou o serviço prometido, há fundamento para pedir indenização com base no CDC. O problema é conseguir executar uma eventual sentença quando a empresa está fora do País, mas do ponto de vista jurídico o direito existe e está bem amparado”, explica.
Sobre a regulamentação, Julianna reconhece avanços recentes com a Lei 14.790 de 2023, que estabeleceu um marco regulatório para apostas esportivas e jogos online. Mas ela alerta que a implementação ainda é lenta.
“Falta fiscalização, falta transparência nos critérios de concessão de licenças e falta estrutura técnica para rastrear o dinheiro que circula nessas plataformas. Hoje, o Estado ainda reage, em vez de controlar. É um mercado bilionário que cresce muito mais rápido do que a capacidade de regulação, e por isso o Brasil precisa de normas mais claras sobre responsabilidade civil, tributação e deveres de proteção do consumidor”, comenta.
Por fim, a especialista orienta os usuários sobre os cuidados necessários. “O primeiro passo é desconfiar de qualquer promessa de ganho fácil. Nenhum aplicativo sério garante lucro. É importante verificar se o site tem licença, se há endereço físico e se o domínio é oficial. Desconfie também de influenciadores que promovem o jogo como ‘investimento’ ou ‘renda extra’, porque isso é publicidade enganosa”, recomenda.
“Se a pessoa começar a perceber que está jogando de forma compulsiva, ou gastando mais do que pode, o ideal é parar imediatamente, buscar ajuda e, se for o caso, registrar denúncia no Procon ou na própria plataforma de pagamento usada para transferir o dinheiro. O vício em jogos é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde, e as empresas deveriam adotar mecanismos de proteção e alerta, mas muitas não fazem isso. O consumidor precisa se proteger onde o Estado ainda não chegou”, conclui.
Bets e influenciadores: uma relação delicada
A discussão sobre a relação entre influenciadores e empresas de apostas ganhou força com a CPI das Bets, instalada em novembro de 2024 no Congresso Naciona. Seu objetivo era investigar a “crescente influência dos jogos virtuais de apostas online no orçamento de famílias brasileiras”, convocando creators para explicar contratos e parcerias com empresas do setor.
O levantamento do Banco Central, apresentado durante a CPI, indicou que os brasileiros gastam entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões por ano em apostas esportivas. Estratégias de marketing incluem influenciadores que divulgam os apps para suas bases de seguidores.
Reportagem da revista Piauí revelou contratos milionários com nomes como Neymar, Carlinhos Maia, GKay, Maya Massafera e Virgínia Fonseca. Segundo a apuração, Virgínia Fonseca recebeu R$ 29 milhões em contrato anual com a Blaze e, em 2022, R$ 50 milhões de outra empresa de apostas, com comissão sobre valores apostados – informação que ela negou em depoimento à CPI. Neymar Jr., por sua vez, teria contrato de cerca de R$ 100 milhões.

Embora as regulamentações de 2025 limitem publicidade direcionada a menores e mensagens que prometam ganhos fáceis, as relações entre bets e influenciadores continuam sendo alvo de críticas pelo poder de influência dessas personalidades sobre o público.
Quando apostar vira destruição
A Revista Leitura Estratégica conversou com um homem, que não quis se identificar, que revelou ter perdido cerca de R$ 700 mil devido ao vício em apostas on-line em Goiás. Ele contou que vendeu bens – carro, casa e loja – para continuar apostando, e que, com isso, acabou perdendo também o casamento.
O homem relatou que começou a apostar em 2021, inicialmente em valores baixos, entre R$ 30 e R$ 50, tentando ganhar de R$ 300 a R$ 400 no campo esportivo. Em pouco tempo, migrou para o cassino virtual, aumentando progressivamente os valores apostados.
“Se torna um vício, uma rotina, porque você perde e vai atrás da recuperação do dinheiro perdido. Quando você vai atrás da recuperação, aí que você se arruína ainda mais e começa o endividamento. Eu comecei a desfazer das minhas coisas. Estou desgastado mentalmente”, compartilha.













